sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

Era Dona Antônia,
talvez outra, talvez a mesma.

Esta, era Dona Antônia padeira;
inteira mãe e vó,
um tanto também biza.

Um dia, já muito mulher,
mas filha, se foi muito, foi tão curtamente,
que isso ela ressentia.

Era Dona Antônia e agora também seu marido morria.
Morria, morria,
morria,
morria; pois que não de morte súbita,
mas de vagarinha e doída morte sem corte.

Dona Antônia, no entremeio, um dia acordou,
botou nas mãos balde e sabão,
e foi indo ao cemitério ter com os pais.

Ia, decidida e zangada.
Zangada com deus, decidida com a raiva do mistério.

Chegou à lápide.
Lavou, refrescou, limpou a pedra dos pais.

Mas e a memória?
Quando subiu os olhos pra inscrição de bronze,
entristeceu: roubaram-lhe quase todas as letras.

Pegou as últimas que sobraram, acarinhou-as.

Voltou pra casa a tempo de ainda ver o marido,
que lhe estendeu as mãos em concha muito como sempre.

Mas Dona Antônia agora era outra:
olhou muito fundo o marido e lhe disse ter descoberto.

É que eram quatro as letras sobreviventes,
e formavam não um substantivo, mas o verbo:

     

       AMAR