Coloco a Clarinha para dormir lendo uma história sobre o castelo de um mágico que entende a língua das crianças.
Ontem ela acordou assustada com os lençóis molhados. Já há muito tempo ela não fazia xixi na cama; disse que sonhou com alguma coisa que já não sabe bem.
Me pergunto a mim pelo que eu lembro dessa língua. Tento imaginar os segredos da Clara com o mundo e, depois, vou intuindo o que eu gostaria de um ser-irmã-muito-mais-velha. Enquanto passeio com ela pelo centro, pelo mam, pela orla, tento assistir ao jeito como aquilo deve aparecer pros seus seis anos.
Minha mãe está no hospital, passará a noite por lá, de novo. Passo pelos álbuns de fotos na estante. Quando ela estava grávida de mim, tinha pouco mais do que a minha idade. Minha mãe cuida da sua mãe no hospital. Só depois de pensar nisso assim tive mesmo a consciência dela como ser humano, com uma realidade além daquela de ser minha mãe.
Olhar as fotos dela quando era jovem me entristece. Mamãe aparece linda, com os olhos cheios de expectativa e agudez, como se quisesse tudo o que tem no mundo. Queria agora conseguir falar para ela sobre a morte de um jeito que parecesse com o amor, e antecipo esse momento em que ela não sofrerá mais a tristeza de já não poder cuidar da sua mãe. Penso se ela tem sentimento de dívida com a minha avó, ou se a tristeza dela é pura e sem acalento. Ela está sozinha e, nisso e já, também não posso cuidar da minha mãe.
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